Por Nelson Ribeiro Fragelli
Na Europa, a culinária desenvolveu-se com as navegações, que traziam novos ingredientes aos pratos. Não só as legendárias especiarias provenientes das Índias — como aprendemos na escola —, mas também matéria-prima como o milho, a batata e o tomate, vindos de outras regiões longínquas. O modelo continuava sendo a Igreja de Roma. Somente no século de Luiz XIV a nobreza tomou a dianteira no aprimoramento da mesa.
Requinte e especialidade da culinária francesa
Mozart deixou uma obra musical vastíssima. Morrendo aos 35 anos, a composição dessa obra exigiu-lhe uma vida de intenso trabalho. “Nos momentos de grande cansaço e necessitando de repouso, eu componho”, costumava ele dizer.
Ele encontrava lazer na sua paixão. E ela o repousava. “Quando muito cansado”, dois velhos amigos franceses — um deles advogado e o outro professor — costumam dizer-me: “Vou a um restaurante”. À mesa eles se entregam ao mais alto dos prazeres sociais, a conversação, possantemente estimulada por sabores aprimorados. De que falam?
Na França realizam-se a todo momento congressos, conferências, encontros, exposições culinárias. Livros e artigos sobre este tema vêm a lume continuamente. A mesa está no centro da cultura do país.
Um dos grandes estudiosos da formação histórica e geográfica da culinária francesa é Jean-Robert Pitte, professor da Sorbonne e membro do prestigioso Institut de France. Seus livros, agradavelmente eruditos, entretanto não ressaltam suficientemente o papel da Igreja Católica na formação cultural da França.
Aprimoramento da culinária nos ambientes católicos
Um bom artigo do “Figaro Magazine” (dezembro 2016), de autoria de Pitte, inspira tais considerações. A arte culinária francesa nasceu nos mosteiros e nas abadias, bem antes da Idade Média. A fé era então levada a todos os povos. As ordens religiosas viviam em missão. Muito numerosas, elas se estendiam por todo o continente europeu e fora dele. As contínuas missões, gerando o espírito de conquista das almas, geraram também o espírito de conquista de bens para as almas. Esse mesmo espírito levou monges e eremitas a desvendar segredos da natureza, pois bem sabiam que Deus tudo criou para os homens. Assim, o conhecimento dos bens naturais se dilatou. Não há arte ou ciência que não tenha recebido dos monges vigoroso impulso inicial.
E também a culinária. As receitas se multiplicaram. Na célebre abadia beneditina de Cluny, na Borgonha — a grande abadia civilizadora do Ocidente —, a fim de favorecer a descoberta de novas receitas, não se podia repetir o cardápio de uma refeição durante o mesmo ano. A cada dia, novos pratos. Em outras palavras, os cozinheiros tinham que criar. Honrosa era a função de cozinheiro. Suas receitas se tornaram célebres, sendo utilizadas até hoje. Aos poucos, elas se expandiram pelo povo.
Desde uma alcachofra até uma mandioca…
Um exemplo. Até então as cozinhas não sabiam para quê servia a alcachofra, essa estranha planta, espécie de flor dura e sem cor. Servirão suas pétalas lenhosas e quase sem substância para algum prato? Servirá talvez para um condimento? Cozida, não tem sabor, mas tem, sobretudo, fibras. Fazer um purê? Com o quê? Seria trabalhoso! Levou-se tempo para encontrar uma aplicação para aquela planta. Somente bem mais tarde ela passou a ser cozida e servida com manteiga enegrecida ao fogo. E hoje é uma boa entrada de uma refeição. Requer elegância para comê-la, desfolhando-a com os dedos até chegar ao seu núcleo central, onde ela oferece o auge de seu sabor.
Deu trabalho a descoberta de uma função degustativa para a alcachofra. Nem todos os alimentos criados têm a generosidade da nossa mandioca, de utilidade imediata. Cozida ou frita, ela nos regala. Dela se obtém uma farinha de emprego universal em bolos e biscoitos. Um pãozinho de mandioca recheado ao Catupiry… Seu cultivo é fácil e as ramas são grossas. Certas regiões do Brasil são preguiçosas, dizia Monteiro Lobato, por causa da mandioca: abundante, boa e barata. Quase não exige esforço de cultivo.
Nobreza e requinte à mesa
Na Europa, a culinária desenvolveu-se com as navegações, que traziam novos ingredientes aos pratos. Não só as legendárias especiarias provenientes das Índias — como aprendemos na escola —, mas também matéria-prima como o milho, a batata e o tomate, vindos de outras regiões longínquas. O modelo continuava sendo a Igreja de Roma. Somente no século de Luiz XIV a nobreza tomou a dianteira no aprimoramento da mesa. Foi quando se difundiram mais intensamente os livros de receita. Criar um prato era resultado da aplicação do saber de dedicados cozinheiros. A função era séria. Ela compreendia o conhecimento da origem dos ingredientes, a combinação de sabores e modificações sucessivas. A elaboração foi desde então contínua. Aprimorou-se a capacidade de degustação. O paladar afinou-se.
Seria a procura do aprimoramento dos sabores algo censurável, próprio a glutões? É certo que não. O aprimoramento traz em si o espírito cristão. A gula é um vício e todo vício derriba o espírito. Subjugado pelo vício, o espírito não mais procura a palatável subtileza e muito menos o requinte. Ora, a culinária na França não cessa de se aprimorar. A propósito, lembro-me de um amigo de infância que não comia manteiga. Como não gostar dessa delícia? Entretanto, certo dia ele comera tanto que, nauseado, nunca mais pôde sentir sequer odor de manteiga. Outro fez o mesmo com o mel. Consumindo-o com intemperança, lambuzou-se de tal modo, que nunca mais pôde degustá-lo. A gula satura e nos leva a voltar as costas aos sabores abusados, até mesmo aos gostos apurados. O requinte à mesa é uma procura de perfeição. E, enquanto tal, reflete o espírito católico.
A mesa devolve o gênio aos franceses
Meus dois amigos franceses à mesa comentavam o pão, o vinho, e todos os pratos. O trigo naquele ano não estava no apogeu. Abundantes chuvas umedeceram-no demasiadamente, causando uma torção de sabor. Também o vinho… escolhemos uma garrafa de um ano em que o frio veio cedo e os açúcares não se desenvolveram bem. Eu observava que a degustação das delícias era vivificada pelo pensamento. As porções servidas eram reduzidas. O estilo nacional não é tipo farta-brutos. A razão exerce um papel primordial no paladar francês, bem como nos comentários dos comensais. O valor das opiniões dos convivas é meticulosamente transmitido à cozinha. Assim se mantêm fregueses. E se aprimoram os pratos. Terminamos o jantar. Os dois estavam acesos, pareciam mais inteligentes, as ideias jorravam, a vivacidade rutilava. Meu advogado descobrira até mesmo que enfoque a dar a um processo complicado. Meu professor o contestava, um tanto provocador, tirando argumentos do histórico processo de Alfred Dreyfus. Aceso debate.
O descanso de Mozart não me saía da cabeça. Eu via que a mesa comunica aos franceses o fulgor que eles lhe vêm dando através dos séculos.
O filme, “A festa de Babette”, mencionado no final do artigo anterior, mostra uma comunidade protestante na qual os esforços do pastor para conseguir a paz entre seus seguidores eram baldados. Querelas se sucediam a mesquinhas contendas. A caridade só despontou entre eles quando seus humores ásperos foram serenados pelo banquete tipicamente francês preparado por Babette. Seu cuidadoso apuro não era senão dedicação ao próximo. Terminada a refeição, tocados por essa deliciosa expressão de caridade, uns pediam aos outros perdão pelas ofensas, fraudes e traições passadas. Era como uma remissão do passado — uma espécie de confissão. Nunca antes tinham assim aberto seus corações.
(*) Fonte: Revista Catolicismo, Nº 794, fevereiro/2017.
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